sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A complicada arte de ver

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."


Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".


Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.




William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.



Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.



Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".



Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".



A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.



Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".



Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...



Rubem Alves

Folha de S.Paulo 26/10/2004

domingo, 25 de outubro de 2009


Sonhos

Então o principe dos números pegou sua mão e disse:
- Vamos para de ser tonta, não tenha medo!
Sua cabeça girava, não queria mais pensar tanto, queria só aceitar, mas era tão dificil e encantador, ao mesmo tempo. Isso a assustava de uma forma estranha. Olhou em seus olhos sentiu o medo crescer, parecia que ia explodir. Indagou:
-Mas é loucura, estamos longe. Não podemos voar!
Ele não imaginava tamanho receio, sabia que ela era insegura, mas achava que já tinha descoberto o poder das palavras sentidas. Tentou explicar:
- Você sente, eu sei que sente! A gente sente, é forte, é suficiente. Só não pare de sonhar, é simples.- e sorriu sutilmente.
Aquilo a atingiu de tal forma, que foi o bastante para notar que estar flutuando. Leve, muito leve. As incertezas já não existiam, só o vácuo e as emoções. E era tão bom.
Descobriu a magia dos números, a complexidade da vida. Estava contente. Via naqueles olhos a esperança e a alegria de viver, que sempre a faltara. Percebeu que por mais debilitado que ele pudesse estar sempre estava lutando. Feliz e sonhador, o principe dos números a ensinou que era o bastante independentemente do resultado.
Acordou com lágrimas no sorriso, e um olhar de saudade.





* Sonhos são fábulas de nostalgia.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009


Pactos...


Como pode um dia, dois, um final de semana mudar completamente tudo o que confiávamos plenamente? Há coisas que se só ocorrem uma vez, e é o bastante pra tudo mudar de forma brusca. As escolhas estão lá, e somos nós que decidimos. A imparcialidade é desculpa, de quem  tem receio de admitir que já escolheu. O problema é sempre o mesmo, devo esperar menos das pessoas, confiar menos, me envolver menos. O duro é que isso dói, sempre de maneira diferente, mas a dor aparece . Os anos de companheirismo, fidelidade, carinho, dedicação, se desfazem como água por entre os dedos. E tudo continuará normalmente, mas é triste ver a confiança que você tanto demora a adquirir, se desfalecer por completo. É triste e dolorido. Coisas tolas desses pactos secretos, que só quem vive entende.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Extremos!
Pronto. A conversa não tem mais graça, e nem sentido. Não sei mesmo o que falar, nem sei se devo ... Provocações até que resolvem, mas só prolongam um pouco mais nosso contato superficial. Já dizia Clarice: chega uma hora que o melhor a se fazer, é não fazer nada. Você nunca sabe, eu também não. Talvez nossa sina seja não saber mesmo, ou talvez um dia descobriremos. Se ao menos existisse um Oceano entre nós, a culpa seria dele. Mas não, não é.
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